Eu nunca contei essa história para ninguém.
Desde 1983, eu acompanho a Fórmula 1 de forma religiosa, assistindo a todas as corridas. Logo, tive o privilégio de acompanhar cada uma das 161 largadas de Ayrton Senna na categoria. Fui testemunha ocular da história da carreira de um dos melhores pilotos de todos os tempos.
Agradeço à minha mãe por isso. Ela não sabia o que fazer para cuidar do primeiro homem que ela estava criando (tenho duas irmãs mais velhas), e me colocou na frente da TV para ver aqueles carros correndo desde os meus primeiros anos de vida. Felizmente, uma das minhas primeiras memórias de infância foi aquele GP de Mônaco de 1984.
Minha mãe foi a pessoa que alimentou o meu gosto por Fórmula 1, a ponto de me acordar de madrugada para que eu pudesse assistir às provas do Japão e da Austrália. Ela sabia que isso era importante para mim, e eu não tinha videocassete para gravar as corridas e assistir na manhã seguinte.
Aliás, não existia TV a cabo, nem reprises decentes na época. Eram outros tempos.
Na infância, torcia pelo Piquet, por falta de opção. Jamais poderia imaginar que Nelson se tornaria esse ser abjeto que conheço hoje. Mas quando Senna apareceu, era fácil perceber que ele era diferente dos outros. Qualquer um constatava isso. É claro que ele se beneficiou da mídia para projetar sua imagem junto ao brasileiro médio, mas seu talento e capacidade de pilotar falavam muito mais alto do que os berros do Galvão Bueno.
Acompanhar a carreira de Ayrton Senna foi algo empolgante, emocional e divertido. Quem hoje vibra com Max Verstappen teria o mesmo sentimento com o piloto brasileiro. Os dois guardam similaridades identificáveis, com o explorar o limite como principal traço de identidade comum.
Isso… e a certeza de que não havia concorrência em pista.
Três títulos mundiais. Todas as disputas com Prost, Piquet, Mansell e Schumacher.
A saída da McLaren. A transferência para a Williams.
1994.
Mas… então… o 1 de maio de 1994 começou em 29 de abril, com aquele acidente do Rubens Barrichello.
Todos ficaram muito assustados com aquela pancada, e muitos defendiam que aquele GP de San Marino seria perigoso. A primeira pista de alta velocidade do calendário se tornou um desafio mortal com o fim dos auxílios eletrônicos, e os próprios incidentes de pré-temporada denunciavam que 1994 poderia ser traumático.
Comentei com a minha mãe sobre o ocorrido com Barrichello. Ela não assistia as corridas. Se informava mais da Fórmula 1 por mim, que devorava tudo sobre o assunto nas mídias da época (jornais e revistas, principalmente: a internet só apareceu 3 anos depois). E ela também sentiu que algo terrível iria acontecer naquele final de semana.
Como, de fato, aconteceu.
Não podemos nos esquecer nunca que Roland Ratzemberger perdeu a vida em 30 de abril de 1994. Era a primeira morte na Fórmula 1 desde os testes de Elio de Anglis em 1986, e a primeira em um final de semana desde Ricardo Paletti em 1982, em um ano tão traumático como seria esse de 1994, já que ninguém menos que Gilles Villeneuve também nos deixou um pouco antes.
Desnecessário dizer que minha mãe ficou aflita, em um sentimento de coletivo com todos que acompanhavam a categoria. Não tinha como não ficar tenso diante de tudo isso.
1 de maio de 1994. 9h13 (horário de Brasília).
Aconteceu.
Em 1 de maio de 1994, em torno de 9h13 da manhã daquele domingo, eu saí da sala e dei alguns passos em direção da cozinha, no fundo da casa. Minha mãe preparava o café para o meu pai, e só ouvia os meus comentários da sala sobre a corrida. Ela não estava na frente da TV quando tudo aconteceu.
Quando cheguei na cozinha, eu disse:
“Mãe… o Senna bateu!”.
De forma imediata, minha mãe respondeu:
“Filho… Ele está morto”.
Naquele momento, entrei automaticamente em um estado de negação.
De forma imediata, respondi à minha mãe que ela não sabia do que estava falando, pois não tinha visto o acidente. Mas quando voltei para a sala e comecei a acompanhar os acontecimentos pela TV, assistia, incrédulo, um Senna que não saía do carro.
Um socorro que demorou a chegar.
Um atendimento em pista mais demorado que o normal.
O sangue na área de escape, fruto da traqueotomia e dos danos na cabeça do piloto brasileiro.
Os movimentos de ressuscitação cardíaca realizado por Sid Watkins.
O corpo sendo coberto, para evitar o contato visual.
O helicóptero pousando em pista.
Todos os procedimentos que foram realizados com Ratzemberger no dia anterior.
Eu simplesmente não queria acreditar que tudo o que eu estava testemunhando estava acontecendo.
Acompanhei com atenção a cobertura jornalística da época. Eu trocava os canais da TV o tempo todo, mesmo sabendo que seria a Globo aquela que forneceria informações mais precisas sobre o evento. O que mais queria naquele momento era boas notícias.
Às 13h40 de 1 de maio de 1994, enquanto o Brasil estava parado para ouvir Roberto Cabrini, tudo o que me veio à mente foi um “eu não acredito”.
A incredulidade me impediu de chorar a morte de Ayrton Senna com a minha mãe, que se desmanchou em lágrimas como se tivesse perdido um filho. E… sim… Senna era um filho para ela.
Abracei a minha mãe, que soluçava de forma compulsiva. Eu sabia que ela estava sofrendo, mas não imaginava que seria naquela proporção. E na minha cabeça, eu pensava: “E agora? O que vai acontecer?”.
Para mim, tudo o que vi em 1 de maio de 1994 foi um pesadelo em estado de consciência. Foi a primeira vez na minha vida em que desejei dormir e acordar em uma realidade onde tudo estava ao normal, e que aquele acidente ou não aconteceu, ou que Senna saiu vivo daquele carro.
Tal e como aconteceu com Berger e Piquet anos antes.
Não foi assim. Nem mesmo nos meus sonhos.
Senna foi velado com honras de chefe de estado. Seu velório durou dias, e mesmo acompanhando tudo pela TV, eu ainda não conseguia derramar uma lágrima sequer. Era a mais absoluta letargia em função de uma negação profunda da realidade. Um dos momentos mais tristes da história da nossa nação, e eu estava tão absorto, que não consegui ir além de consolar a minha mãe pela perda dela.
Não racionalizei a minha perda com a partida de Senna.
Duas semanas depois. GP de Mônaco.
Eu tinha a consciência de tudo o que aconteceu em 1 de maio de 1994. Mas fui para a frente da TV assistir ao treino classificatório com algo latente no meu subconsciente: a expectativa der ver a Williams número 2 na pista, com Ayrton Senna ao volante.
E me frustrei quando isso não aconteceu.
No domingo, 15 de maio de 1994, fui para a frente da TV, como sempre fiz, para assistir a corrida. E meu subconsciente esperou por ver o carro de Senna no grid.
De novo, a decepção interna. Porque isso não aconteceu.
O campeonato foi avançando. E nada de Ayrton Senna correr.
Aconteceu aquela polêmica decisão de campeonato na Austrália. Eu estava acordado de madrugada, torcendo por Damon Hill como se fosse o Senna disputando aquele título, talvez por entender que esse seria o legado daquela tragédia. Uma tolice da minha parte.
Pode ter certeza: xinguei o Schumacher pela manobra, achando que, daquela forma, eu poderia amaldiçoa-lo ou responsabilizá-lo pela perda do Senna.
Outra ignorância de minha parte. Testemunhei e aplaudi os 7 títulos de Schumacher, pois o tempo me deu maturidade para reconhecer o gênio que ele foi em pista.
Passaram-se os anos…
Testemunhei todas as eras que vieram depois. Schumacher, Vettel, Hamilton, Verstappen.
Levei mais de 20 anos para efetivamente viver o luto da morte de Senna.
Em 2018, dias antes de me mudar para Florianópolis, decidi procurar no YouTube as reportagens da época. E algo em mim finalmente destravou aquele sentimento de dor pela perda. Talvez as saudades da minha mãe, a expectativa da mudança de cidade, as aflições que sentia pelo desconhecido ou o efetivo desejo de revisitar tudo.
Sinceramente? Não sei.
O que sei é que, diante da tela do computador, revisitando aquele final de semana e toda aquela movimentação após 1 de maio de 1994, eu comecei a chorar. Sozinho. Tal e como a minha mãe fez.
A diferença é que eu não tinha ninguém para abraçar. Ninguém para conversar. Apenas as paredes de um apartamento quase vazio e as caixas da mudança para dividir uma dor que ficou guardada por mais de 20 anos.
O impacto de Ayrton Senna em mim foi tão profundo, que levei mais da metade da minha vida para absorver por completo o fato de que ele foi embora. Essa experiência revelou muitas coisas sobre mim que eu mesmo não fazia ideia de que existiam. Reforçou que eu amo esse esporte cruel chamado Fórmula 1 com toda a minha essência…
…a ponto de negar por duas décadas que um dos melhores pilotos da história desapareceu diante dos meus olhos.
Em 1 de maio de 2024, não há qualquer margem de dúvida: Senna vive. Porque Senna é eterno.
Escolhi o dia de hoje para compartilhar essa história como uma forma de agradecer por ser testemunha ocular de uma das mais incríveis trajetórias esportivas de todos os tempos. Porque ver Ayrton Senna vencer meu deu alegrias profundas, e a esperança de que um dia eu poderia vencer também em qualquer coisa que eu desejasse fazer na vida.
Senna representava muito para todo mundo, onde cada um sentia por ele em intensidades, formas e visões diferentes. E por mais que eu resistisse à ideia de ver sua carreira como algo maior do que se apresentava diante da minha frieza em seguir acompanhando a Fórmula 1 apenas e tão somente por querer acompanhar o esporte do que apenas esse ou aquele piloto (algo que mantenho como convicção até hoje), simplesmente optei por me deixar levar pelos sentimentos e motivações que são específicos para esse gênio do automobilismo.
O tempo e a maturidade me deixaram mais sensível, passional e nostálgico. Ao mesmo tempo, me tornei mais coerente e racional sobre os fatos e tudo o que sinto sobre esses fatos.
Hoje, até consigo lidar com a perda de Senna com a devida maturidade. Compreendo que foi uma fatalidade circunstancial, e que culpar a pista, o profissional que fez a adaptação solicitada pelo piloto na barra de direção, Patrick Head ou Frank Williams é apenas um desejo de transferência de culpa.
Na verdade… existe um culpado sim. Alguns culpados: os engravatados que permitiram a continuidade dos eventos daquele final de semana, os responsáveis pelo banimento abrupto da eletrônica na Fórmula 1 e, principalmente, Bernie Ecclestone (vice-presidente da FIA) e Max Mosley (presidente da FIA), que defenderam a continuidade do GP de San Marino por interesses comerciais.
E… mesmo assim… depois de 30 anos…
O que melhor podemos fazer é reverenciar o gênio Ayrton Senna. Um piloto singular. Uma lenda do esporte.
Deixo esse testemunho porque é impossível não ser nostálgico no dia de hoje. Compartilho essas visões para deixar as lágrimas rolarem pelo meu rosto. Porque hoje é dia de chorar a perda, mas celebrar a lenda.
E agradecer. Principalmente à minha mãe. Por causa dela, tive a honra e o privilégio de ver Ayrton Senna correr e vencer.
Senna vive. Senna é eterno.
Ayrton Senna. Do Brasil.