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Corra! (2017) | Cinema em Review

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O preconceito pode ser uma hipnose coletiva, que existe apenas para se apoderar do que há de melhor da cultura negra. Porque ‘preto está na moda’.

Corra! não é um filme fácil. O thriller de mistério com toques de humor negro é uma forte crítica social e cultural, que se vale da sutileza de uma premissa absurda para levantar fortes questionamentos sobre qual é o papel do negro na sociedade norte-americana, sob a perspectiva de objeto de consumo pelo viés da alta popularidade no consumo de massa, criando a falsa sensação de aceitação entre os brancos e outras etnias.

Pode parecer um discurso pesado e de ódio por parte de Jordan Peele, mas é feito de forma tão pontual e precisa, que não tem como não ser elogiado. Obviamente, algumas mentes mais fracas (ou os brancos burros mesmo) não vão entender a mensagem geral do filme. Ou não vão querer entender, pois não vão aceitar que os brancos são os grandes vilões da história. Na verdade, para quem observar a trama com cuidado, verá que os negros também são uma parte do problema.

De um grande problema.

Chris acha que está em um relacionamento normal com Rose, uma moça branca, educada, inteligente e com personalidade. Ela compra as causas dele diante dos claros sinais de preconceito que cercam o casal ao longo do dia a dia, mas ele mal poderia imaginar que estaria entrando em uma grande barca furada, quando toda a excêntrica família de Rose e seus amigos mais excêntricos ainda tentam envolver o rapaz em uma espécie de ‘culto de integração racial’, que nada mais é do que uma comunidade bizarra que cria um imenso campo de distorção da realidade, mostrando uma falsa aceitação ao rapaz.

Basicamente todos estão hipnotizados pela ideia do ‘black is beautiful’, mas consideram o rapaz como um objeto excêntrico a ser estudado. E isso não acontece só com Chris. Outros negros foram simplesmente sequestrados, tiveram suas mentes alteradas, e foram integrados nesse sistema de aceitação coletiva. Tudo ali é milimetricamente planejado para que o rapaz se sinta envolvido na atmosfera onde ele é o centro das atenções.

Porém, como Chris carrega seus traumas de infância e suas perdas, ele não se vê completamente integrado naquela comunidade de malucos. Desconfia de tudo e de todos, até que aos poucos a realidade dos fatos vem à tona. É claro que ele mesmo tem a sua dose de preconceito disfarçado na desconfiança: onde já se viu um rapaz negro do Bronx se vestir como um almofadinha e estar casado com uma senhora branca 30 anos mais velha que ele?

Onde será que eu já vi isso? (sic).

 

 

Corra! é um filme que exige cérebro do espectador. Cérebro, espírito livre, desprendimento de valores e preconceitos, senso crítico, bom senso e várias outras características psicológicas que não estão presentes na maioria das pessoas que eu conheço. Se disfarça muito bem como thriller de suspense e terror para escancarar as paranoias presentes em muitos negros que, admito, tem sim preconceito contra os brancos. Por outro lado, mostra de forma satírica como a sociedade atual se comporta com a falsa aceitação da cultura negra.

Tem muito branco se fingindo amigo dos negros por aí. Apenas e tão somente porque ‘o preto está na moda’. A cultura negra nunca esteve em tão evidência no mundo. O empoderamento dos afro-americanos começa a ecoar com muita força. Não estou falando especificamente de Pantera Negra, filme que estreia nessa semana. Basta olhar para Jay-Z e Beyoncé como o casal mais poderoso do mundo da música nesse momento, e você começa a entender o que eu quero dizer.

Como negro, posso dizer com propriedade: eu consigo perceber não apenas o preconceito escancarado, mas principalmente o velado. Recentemente passei por isso em Florianópolis, cidade onde vou morar: afinal de contas, um rapaz negro em um Uber no banco de trás com uma senhora branca com mais de 70 anos à 1h20 da manhã de sábado é algo considerado suspeito pela polícia local. Porém, quando disse que trabalhava com jornalismo, o tom mudou.

Nem por isso vou deixar de morar nessa cidade.

Corra! faz a sua parte de cutucar a ferida com força. Não usa um discurso politizado. Se apropria das ironias da vida para denunciar o quanto a sociedade tem uma visão distorcida sobre o fim do preconceito, abraçando a proposta do ‘é bonitinho ter o amigo negro de estimação’, mas sem procurar conhecer e entender a cultura negra com profundidade. Entende que apoiar a causa afro-americana é comprar o último álbum do Kendrick Lamar e ver todos os filmes do Denzel Washington. Quando na realidade o buraco é bem mais embaixo. Os problemas são muito maiores. A brutal diferença de entendimento ainda existe.

Estamos diante de um filme com algumas referências dos filmes clássicos de terror, o que vem bem a calhar nesse tipo de proposta. Ao mesmo tempo, sua fotografia e trilha sonora dão o ritmo à história, e seu roteiro complexo está bem amarrado. Sua narrativa pode ser um pouco lenta, mas compensa e muito pela sutileza das críticas feitas ao longo da história, o que requer uma certa dose de atenção do espectador.

 

 

O elenco é outro ponto forte do filme. Com atuações marcantes, vendem muito bem toda a proposta geral da trama, passando credibilidade em suas interpretações. Um elenco relativamente pequeno, mas escolhido a dedo para a ocasião.

Corra! está merecidamente indicado ao Oscar de Melhor Filme. Não deve vencer, mas a indicação em si é um prêmio. É o tipo de filme que, na década de 1980, jamais teria sido indicado. E acho que só foi indicado hoje porque, dentre tantos outros motivos, ele veio depois do impactante 12 Anos de Escravidão, que gera polêmicas até hoje.

Muita gente vai se incomodar com esse filme. Alguns brancos vão simplesmente detestar.

Mas Corra! é um filmaço! Quem tem Q.I. avançado vai simplesmente adorar!

 

 


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@oEduardoMoreira