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Entenda o fenômeno ‘Um Filme Minecraft’

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Em apenas duas semanas de exibição, ‘Um Filme Minecraft‘ não só dominou as bilheterias globais como também transformou radicalmente a experiência cinematográfica contemporânea… em um autêntico inferno na Terra.

Se você estava reclamando das pessoas berrando (e não cantando) durante “Defying Gravity” no final de ‘Wicked’ (parte 1), você certamente vai sentir falta desse momento quando testemunhar o que está acontecendo nas sessões do filme baseado no jogo de videogames mais popular dos últimos 10 anos.

O longa ultrapassou todas as expectativas iniciais para se consolidar como a maior bilheteria de 2025 (até agora), arrecadando US$ 550 milhões ao redor do mundo. Mas o fenômeno vai muito além dos números: estamos testemunhando uma revolução comportamental nas salas de cinema que divide opiniões e gera debates sobre o futuro da experiência coletiva de assistir a filmes.

E logo de largada, eu digo que estou do lado de quem está revoltado com esse “excesso de envolvimento e interação” dos fãs com o filme.

 

Quebrando todos os recordes

No segundo final de semana de exibição, ‘Um Filme Minecraft’ manteve um desempenho excepcional, acumulando US$ 80 milhões apenas nos Estados Unidos. Apesar da queda natural de 50% em relação à estreia monumental de US$ 162,7 milhões, os resultados superam com sobras outras grandes produções do ano, como “Capitão América: Admirável Mundo Novo”.

A chegada deste blockbuster revitalizou um mercado cinematográfico que enfrentava um início de ano desanimador, pavimentando caminho para outras superproduções aguardadas como ‘Thunderbolts*’, o capítulo final (será?) de ‘Missão Impossível’ e a adaptação live-action de ‘Lilo & Stitch’.

A trajetória de ‘Um Filme Minecraft’ começou de forma controversa. Os primeiros trailers foram duramente criticados nas plataformas digitais, acumulando recordes negativos nos canais oficiais da Warner no YouTube.

Mas tal e como ocorreu com ‘Super Mario Bros.’, testemunhamos uma divisão clara entre a percepção da crítica especializada e o entusiasmo do público-alvo.

A matemática por trás deste sucesso é simples: o universo Minecraft possui uma base de jogadores oficialmente estimada em 300 milhões (dados de outubro de 2023), com números atuais provavelmente muito superiores.

Esses números são apenas a ponta do iceberg, considerando que existem aproximadamente 600 milhões de usuários registrados, posicionando Minecraft como o quarto jogo mais popular do planeta.

E não precisa ser nenhum gênio dos cálculos para concluir que o sucesso do filme nas bilheterias está, fundamentalmente, na sua base de jogadores ao redor do mundo, e não exatamente pela qualidade que o filme entrega.

Até porque… quem se importa com o roteiro ou construção narrativa quando você tem um exército de jogadores de videogames ávidos para conferir como o Jack Black vai interpretar o Steve…

 

Ecossistema de consumo que vai muito além do jogo

O que torna o fenômeno Minecraft verdadeiramente único é sua capacidade de expandir além dos jogadores ativos.

Milhares de criadores de conteúdo transmitem suas aventuras digitais diariamente, atingindo milhões de espectadores que não necessariamente jogam, mas consomem avidamente conteúdos relacionados ao universo cubicular.

Neste aspecto, o YouTube é diretamente responsável por parte da pavimentação do sucesso de Minecraft a longo prazo. Muitos produtores de conteúdo ganharam o reconhecimento dos fãs com lives e vídeos dedicados ao jogo.

Tá, eu sei que no meio de tudo isso veio o Monark. Mas posso compreender que toda revolução traz algum dano colateral.

A vasta rede de entusiastas, composta majoritariamente pela Geração Z, encontrou na adaptação cinematográfica uma oportunidade de celebração coletiva, transformando as salas de cinema em verdadeiros espaços comunitários semelhantes aos servidores online do jogo.

 

Como adaptar um universo infinito?

Transpor a essência de Minecraft para as telonas representou um desafio hercúleo, e até por isso ficou mais fácil apostar em um filme onde o roteiro era “qualquer coisa” do que em uma história mais elaborada e fechada em um centro narrativo mais crível ou sério.

Criado originalmente por Markus Persson e posteriormente adquirido pela Microsoft por 2,5 bilhões de dólares, o jogo se caracteriza por gráficos intencionalmente simplificados, que propiciam infinitas possibilidades criativas.

A ausência de uma narrativa central definida permitiu que o jogo se mantivesse relevante por quase duas décadas, sustentado por milhares de modificações e uma comunidade vibrante que constantemente reinventa a experiência.

Ou seja, tudo o que a Warner Bros. tinha que fazer era desenvolver uma narrativa cinematográfica que captasse a essência desta plataforma essencialmente colaborativa e não-linear.

O triunfo indiscutível de ‘Um Filme Minecraft’ junto ao seu público-alvo está justamente na sua capacidade de comunicar-se diretamente com os conhecedores do universo do jogo. Esse filme precisava ser para quem gosta e joga Minecraft.

E neste aspecto, o longa acerta em cheio.

A produção está repleta de referências meticulosamente inseridas, desde frases icônicas como “Quando criança, eu ansiava pelas minas” até a inconfundível trilha sonora assinada por C418. Sem falar na adaptação dos diálogos para o português do Brasil, com falas adaptadas que deixaram a experiência do filme ainda mais imersiva para os jogadores brasileiros.

No entanto, nenhum elemento conquistou tanto a audiência quanto o Chicken Jockey – uma raridade dentro do jogo que se transformou em catalisador de um fenômeno comportamental sem precedentes nas salas de exibição.

E é aqui que acaba o sonho. E começa o pesadelo para quem só quer assistir ao filme.

 

Um grito insuportável, que ultrapassou os limites

No universo de Minecraft, existe apenas 5% de probabilidade de que um zumbi se materialize montando uma galinha – o famoso Chicken Jockey. Dada sua raridade, este encontro é extremamente celebrado nas transmissões ao vivo.

A inclusão desta referência no filme desencadeou uma reação em cadeia que rapidamente viralizou quando gravações de espectadores capturaram a explosão coletiva de entusiasmo nas salas de cinema.

E aqui, entenda “entusiasmo” como “gente sem noção, que acha que a sala de cinema é a sala da casa dele”.

Ou será que estou sendo muito crítico e severo? Daqui a pouco falo mais sobre isso.

O grito de “Chicken Jockey!” tornou-se o marco de uma nova forma de interação com o cinema, reminiscente de outros fenômenos culturais como ‘The Rocky Horror Picture Show’ ou, mais recentemente, ‘Wicked’, mas com proporções significativamente amplificadas.

O que começou como uma manifestação espontânea de júbilo rapidamente evoluiu para situações que desafiam a gestão tradicional das salas de cinema.

Na verdade, transformou a experiência de ir ao cinema em o mesmo que desejar beijar o capeta no inferno mesmo.

Relatos de projeções interrompidas, intervenções policiais e comportamentos extremos – incluindo a introdução de fogos de artifício e até mesmo galinhas reais nos cinemas – obrigaram estabelecimentos a adotarem medidas extraordinárias.

O próprio protagonista Jack Black fez uma aparição surpresa em uma sessão, apelando por moderação, enquanto um cinema em Nova Jersey implementou a obrigatoriedade de acompanhamento de responsáveis para menores.

Vários estabelecimentos passaram a exibir avisos de isenção de responsabilidade, alertando sobre consequências para comportamentos inadequados.

E todo mundo conhece a regra: se tem uma placa dizendo para não fazer algo absurdo (ou uma notificação antes do filme alertando sobre os exageros), é porque alguém já fez aquilo em algum momento no passado.

 

Tudo muda o tempo todo no mundo

Então…

Eu citei o exemplo de ‘The Rocky Horror Picture Show’, e vou adicionar mais dois, que são de experiências pessoais.

Quando eu era criança (na casa dos 7 ou 8 anos de idade), dois filmes marcaram a minha experiência cinematográfica para sempre: ‘Indiana Jones e a Última Cruzada’ (uma das melhores lembranças que guardo da minha mãe) e ‘Karatê Kid: A Hora da Verdade’.

Nos dois filmes, as salas de cinema lotadas de pessoas foram palco de interações coletivas: ou estavam vibrando com Harrison Ford batendo em nazistas, ou lutavam junto com Daniel Larusso.

Nem preciso ir muito longe: em ‘Vingadores: Ultimato’, o clima nas sessões que fui para assistir era de final de Copa do Mundo, e o ‘Vingadores… Avante!’ foi comemorado como um gol aos 48 do segundo tempo.

Interagir com os filmes é uma constante do cinema blockbuster. É parte do envolvimento espontâneo do público com aquela obra, e apenas os filmes mais populares conseguem despertar no seu público essa reação coletiva.

Ou seja, não estamos pegando no pé de ‘Um Filme Minecraft’ por causa do envolvimento emocional genuíno. Até porque, com alguma sorte, esse filme vai despertar na Geração Z o mesmo que senti no passado com os filmes que vi nos primeiros anos da minha vida.

E é esse envolvimento emocional que faz com que as pessoas se apaixonem pelo cinema de forma genuína e autêntica.

O problema está no excesso e na falta de bom senso de boa parte do público, que realmente acredita que pode fazer o que quiser na sala de cinema, acabando com a experiência de outras pessoas que não se envolvem tanto com o que é exibido em tela.

Quando todo mundo achava que a audiência de ‘Wicked’ já tinha complicado (e muito) a vida de quem gosta de ver um filme de forma mais sossegada, parte do público de ‘Um Filme Minecraft’ pediu para a mãe segurar a latinha de Monster Energy para elevar o cenário de caos para níveis inacreditáveis.

No meio de tudo isso, o cinema tenta se reinventar e acompanhar as mudanças. Sessões com ‘sing along’ (liberadas para o público cantar junto) e exibições em formatos como 4DX, onde determinados comportamentos participativos são não apenas tolerados, mas incentivados como parte da atração.

E é claro que os críticos mais conservadores tentam agora interpretar um fenômeno que, longe de ser marginal, está associado à maior bilheteria do momento. Devemos abraçar esta nova forma de interação coletiva com o cinema ou soar alarmes sobre o declínio da civilidade nos espaços culturais compartilhados?

Não existe uma resposta simples. Ou talvez essa resposta exista: todo mundo precisa ter bom senso.

‘Um Filme Minecraft’ não é voltado para quem gostou de ‘Pobres Criaturas’, ‘Oppenheimer’ ou ‘Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo’. Ele é voltado para quem ama o jogo Minecraft. Essa é a missão desse filme. E está tudo certo.

Feliz é daquele que compreende isso. Mais feliz ainda é o ser humano que é flexível o suficiente para também gostar de gêneros de filmes tão diferentes. O mundo não pode ser monotônico do jeito que alguns “especialistas” em cinema entendem, pois o próprio ser humano é plural e multifacetado.

Por outro lado, os fãs de Minecraft precisam sim baixar a bola, pois nem todos que estão nas salas de cinema tentando ver o filme vão querer se comportar como animais no cio. Muitos só querem ver o que é exibido na tela e nada mais.

De novo: não existem respostas fáceis.

Mas uma coisa é certa.

‘Um Filme Minecraft’ definitivamente demonstra que as fronteiras entre as diversas formas de entretenimento digital estão se dissolvendo, e as novas gerações estão redefinindo ativamente o que significa participar de um evento cultural coletivo no século XXI.

Se bem que… sempre existe um limite para tudo isso.

E, para mim, o limite é a galinha viva dentro do cinema.

Isso, para mim, é inaceitável.


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