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O centenário de Clarice

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Nesse momento, Clarice está sentada diante da janela, olhando para o sol forte que bate na ilha, observando o reflexo da luz no mar azul. Suas mãos, delicadas e frágeis pela ação do tempo, desenham o contorno das pedras que emergem daquela pintura criada pela natureza. Ela pensa nos contrastes dos elementos naturais, ao mesmo tempo que reflete no paralelo que existe entre a delicadeza de suas mãos e a fortaleza do seu interior, tão bem expressa pelas palavras ao longo de uma vida inteira.

Hoje, o olhar de Clarice para o mar é sereno. Outro contraste da mulher que, no passado, olhava para o mundo com coragem, desafiando o lugar comum e o cotidiano de forma desafiadora. Ela sempre soube que sua visão de mundo era diferente daqueles que se limitaram a ter a tão criticada “visão de ilha”, onde os pensamentos se limitavam a tudo que os olhos poderiam alcançar.

Clarice sempre se perguntou: “e depois do mar? O que tem? O que vou encontrar?”.

Ela olha para os seus pés descalços e cansados de tanto caminhar, e pensa na jornada. Jamais pensou no ponto de chegada, pois na sua busca por algo que ela não mais conseguia expressar em palavras (uma vez que LIBERDADE era um termo limitante), entendeu que parar em algum lugar e concluir que é feliz ali é uma espécie de sabotagem contra ela mesma. Ela percebeu que caminhar e olhar para os cenários da estrada era apenas um dos diversos pontos de conexão com esse sentimento de exaltação plena que nunca foi expresso ou traduzido em palavras.

Entre um gole de café e outro como companhia para a paisagem que admira, Clarice reflete em como conseguiu saborear a vida, devorando os seus limites físicos, emocionais e intelectuais. Amou tão intensamente que, em alguns momentos, sentiu a dor de tanto amar, mas também o prazer pleno de um grande amor. Sentimentos à flor da pele, como se sua pele fosse uma flor desabrochando a cada dia.

Clarice sente que foi além disso. Conciliou a ideia de amar tantas coisas e pessoas ao longo da existência, mas sem abrir mão do direito sagrado de se amar.

Ela cruza os braços pelo seu corpo, se abraçando. Se amando mais uma vez. Se lembra que, em um determinado momento de sua existência, parou de se entender, pois estar vivo supera qualquer entendimento racional. Viver é sentir a vida por completo, e isso é algo muito complexo para qualquer ser humano dito racional.

Menos para Clarice, que é tão racional sobre sua existência terrena, que abriu mão da racionalidade para elevar os seus sentimentos mais sobres sobre o mundo ao seu redor.

Agora, Clarice olha para o reflexo que o vidro faz, exibindo o seu rosto com as marcas do tempo. Lembra que teve várias faces ao longo da vida, e sorri com essa imagem diante dos seus olhos. Entende que a sua melhor versão sempre será a atual, pois a anterior já saiu de moda.

Clarice sente uma lágrima rolar pelas rugas do seu rosto, e recebe do tempo uma brisa como presente. Sorri, mais uma vez, pois entende que o presente é sempre um presente. É a recompensa por superar o passado. É a janela aberta para o futuro.

É uma pena que eu não posso abraçar Clarice no seu centenário. Se eu pudesse, o faria respeitosamente. Quem sabe confessaria em um sussurro no seu ouvido: “muito obrigado por compartilhar o seu mundo e a sua alma comigo”. Poucas vezes um ser humano expôs tanto o seu infinito particular para o coletivo que, em muitos casos, sequer tinha quociente de inteligência suficiente para compreender a profundidade de suas palavras.

Clarice… sua alma exposta alcança a minha mente e a de muitos até hoje. Sua visão de mundo à frente do seu tempo revolucionou a minha vida. De forma respeitosa, reverencio o seu centenário, e mais uma vez agradeço por inspirar mentes e corações de pessoas que também aprenderam a olhar além do mar, despertando questionamentos que são combustíveis para seguir caminhando em estradas belas e desafiadoras.

Que Clarice continue a inspirar as almas revolucionárias, os corações apaixonados pela vida, os amantes incondicionais e as mentes libertárias. Que as visões de mundo de uma mulher além do seu tempo sejam melhor compreendidas na era da comunicação de massa e pelas gerações conectadas.

Que nossos corações se tornem mais próximos pelas palavras de uma mulher que traduziu o ato de amar como um dos sentimentos mais poderosos da humanidade. Alguém que viveu e traduziu a melhor forma de viver de uma maneira profunda e avassaladora.

Clarice tem 100 anos. Mas números são irrelevantes para quem alcançou a eternidade.


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@oEduardoMoreira