Press "Enter" to skip to content

Pelo visto, “a freak off compensa”

Compartilhe

O freak off compensa.

Pelo menos, foi isso que entendeu o júri do julgamento do Diddy lá nos Estados Unidos. O rapper Sean “Diddy” Combs — ou P. Diddy, ou Puff Daddy, sei lá qual nome ele está usando neste momento — foi inocentado de 3 das 5 acusações que pesavam contra ele na Justiça norte-americana, nos tribunais de Nova York.

Essas três absolvições dizem respeito justamente aos crimes mais graves, aqueles que poderiam levá-lo à prisão perpétua. Como ele foi considerado culpado em apenas duas das cinco acusações, e como a sentença ainda não foi anunciada — ou seja, temos apenas o veredito de culpado ou inocente, não o tempo de pena —, é possível que Diddy pegue, no máximo, 20 anos de prisão.

E, com atenuantes como ser réu primário e bom comportamento, é certo dizer que Diddy pode sair da cadeia muito mais rápido do que a gente imaginava.

Mesmo com todas as evidências. Mesmo com todas as provas. Mesmo com todas as denúncias. Mesmo com tudo o que foi dito sobre este caso, Diddy pode sair da cadeia muito mais cedo do que o esperado.

Para Diddy, escapar da prisão perpétua é uma vitória, considerando a robustez do caso e a quantidade de elementos palpáveis presentes nas chamadas freak offs.

 

Minha raiva com o Diddy é enorme

É difícil falar sobre isso. Muito difícil.

Porque, quando você é jovem, quando está na década de 1990 e ouve gangsta rap, você acaba se envolvendo com tudo isso — inclusive nos aspectos pessoais e emocionais. Porque, sejamos francos: o rap e o hip hop, assim como aconteceu com o funk no Brasil, são movimentos do povo preto.

São expressões que se rebelam contra o sistema, que mostram que é possível vencer. Para quem vem de baixo, do gueto, para quem é marginalizado pela vida e pelo mundo, isso é muito importante. Importante no sentido de autoafirmação.

Não estou dizendo que devemos defender a ideia de pegar em armas e mudar o sistema com tiros, porrada e bomba. Mas, sim, existe uma cultura nas comunidades pobres e negras que prega o empoderamento por meio da reação, do revide, do troco.

Tem gente que vai dizer: “Não, a gente não deve revidar, porque isso é se rebaixar ao nível do agressor.” Mas, quando você é uma pessoa preta que nasce num local pouco favorecido, onde o Estado sequer chega para oferecer saneamento básico, alimentação digna, moradia decente, você precisa dar respostas ao sistema.

E, às vezes, essas respostas vêm em forma de versos rimados, meio ritmados, com uma batida no fundo.

Diddy vendeu a ideia de que um homem preto pode vencer, especialmente dentro do contexto racial norte-americano, que é muito mais agressivo, verborrágico e enfático do que o brasileiro.

A miscigenação no Brasil apenas suavizou o racismo — não o eliminou. Nos Estados Unidos, a segregação foi clara, sistemática. Leis foram criadas para separar pretos e brancos. Portanto, a questão racial lá é mais complexa, mais explícita, mais dura.

Aliás, vou citar aqui as meninas do canal do YouTube Naty e Isa. Elas fizeram um vídeo direto de Nova York comentando o caso, falando sobre o veredito, e levantaram dois pontos importantíssimos que foram ignorados na sentença.

O primeiro é a institucionalização da ideia de que, se a mulher está em um relacionamento afetivo com um homem, tudo passa a ser consensual. Ou seja, as mulheres que denunciaram Diddy, por estarem namorando com ele, teriam, segundo o júri, automaticamente consentido com qualquer coisa.

Isso é um absurdo gigantesco.

Eu não estou no meu lugar de fala, mas gostaria que as mulheres que estão lendo este artigo refletissem: de acordo com o júri do caso, essas mulheres estariam, por estarem envolvidas emocionalmente com ele, à mercê dos desejos do parceiro.

Se ele quiser criar uma festa insana, encher a casa de desconhecidos, chamar profissionais do sexo, atrizes pornô, e drogar todo mundo com substâncias ilícitas, e mandar essas mulheres fazerem sexo com quem ele quiser, isso é considerado “consensual”. Pela interpretação do júri americano, sim.

Isso é extremamente perigoso e problemático. É difícil aceitar esse tipo de entendimento como normal.

O segundo ponto levantado por Naty e Isa é a questão racial da sentença.

Duas mulheres pretas denunciaram Diddy. Elas foram violentadas. Elas disseram “não”. E esse “não” não foi respeitado. E as perguntas que ficam são: e se fossem mulheres brancas? Como o júri teria reagido?

Porque não dá para dissociar a ideia de que, enquanto se fala tanto que “vidas negras importam”, as vidas das mulheres negras parecem não importar nada, pelo menos neste caso.

Tivemos denúncias. Evidências. Provas. Um estoque industrial de óleo de bebê encontrado na mansão do Diddy. Filmagens. E, mesmo assim, a defesa conseguiu relativizar tudo. Um vídeo divulgado pela CNN, onde Diddy agride Cassie Ventura, foi retirado do caso porque, com manobra jurídica, os advogados classificaram aquilo como um caso de violência doméstica — quando, na verdade, as acusações iam muito além disso.

Não sei se a promotoria falhou ou se houve má vontade do judiciário, mas o fato é que ignoraram o contexto geral. Ignoraram o histórico de violência, os múltiplos relatos, as denúncias acumuladas. Por conta desses malabarismos jurídicos, o caso se transformou numa aberração. Uma aberração jurídica.

E uma aberração moral.

 

De freak off a freak show

Durante todo o processo, muitas pessoas zombaram das freak offs, minimizaram a dor das mulheres, ironizaram as vítimas.

Faltou sororidade por parte de muitas mulheres norte-americanas.

Porque é fácil dizer “isso não me afeta, então não me importo”. Mas e se fosse com você? E se fosse com sua irmã, sua filha, sua neta?

Cria-se, com esse veredito, um precedente perigoso: agora há uma decisão judicial que relativiza a dor da parte mais frágil com base na existência de um vínculo afetivo. Se há relacionamento, o homem pode fazer o que quiser com a mulher — esse é o recado.

Repito: não estou no meu lugar de fala. Só estou refletindo sobre isso porque penso nas mulheres da minha vida.

Penso nas minhas sobrinhas, nas minhas irmãs — apesar das diferenças. Nas mulheres com quem me relacionei, com quem dividi a cama. Penso nas sobrinhas, filhas e netas de outras pessoas.

E me pergunto: se isso tivesse acontecido com alguém próximo, essa indiferença ainda seria aceita? Essa normalização ainda seria tolerada?

Diddy vai sair da cadeia. Ele está preso enquanto aguarda a sentença, mas sabemos que será por pouco tempo.

É evidente que não dá para comparar isso com prisão perpétua. Por isso ele vê essa sentença como vitória.

Mas, quando for solto, as vítimas terão que entrar em programas de proteção a testemunhas. Porque a vida delas corre risco. E quem ousou depor contra Diddy pode sofrer retaliações graves.

O recado que o coletivo norte-americano passa — já que o julgamento foi por júri popular — é que, se o homem tem dinheiro, fama, e os mecanismos para manipular o sistema, a cor da pele não importa.

O que manda é o dinheiro.

Na semana passada, conversei com uma pessoa e disse uma verdade incômoda: o racismo está diretamente ligado à estrutura de poder. Quem tem dinheiro, manda. O apartheid, a colonização britânica na Índia e no Paquistão, o racismo brasileiro… tudo isso girou em torno do poder.

Diddy comprova que, se você for preto e muito rico, o racismo pode até não te atingir diretamente. Ele atinge os outros.

Foi assim com O. J. Simpson: um dos atletas mais populares dos EUA, que também se safou da Justiça mesmo com provas robustas contra ele.

Eu, na minha inocência, acreditei que Diddy seria condenado à prisão perpétua. Mas quem sou eu? Um iludido que ainda acredita na justiça — até mesmo na americana, que é mais complexa que a brasileira.

É triste pensar que o freak off compensa. Eu não queria que minhas sobrinhas passassem por isso um dia.

E, se o judiciário brasileiro entender que a dor delas não vale nada, eu sinceramente não sei qual seria minha reação.

Mas, com certeza, não seria das mais bonitas.


Compartilhe
@oEduardoMoreira