“But I’m a creep. I’m a weirdo.
What the hell am I doing here? I don’t belong here.”
Impossível não se identificar com uma história que começa com as palavras de “Creep”. A canção da banda Radiohead não é apenas a tradução de como eu me vejo aqui em Florianópolis, mas também ao longo da minha vida inteira.
Sempre me senti uma aberração por ser negro. Sempre me senti o esquisito por abraçar culturas e visões de mundo diferentes. Por diversas vezes questionei o meu lugar no mundo, ou se merecia viver esse tempo.
Já tentei estabelecer um ponto final em tudo isso.
Logo, despertar para a relevância do personagem central dessa história quando ouço essas palavras nos primeiros minutos desse filme não é apenas a parte essencial da conexão que precisamos estabelecer com uma obra ficcional para absorver o máximo possível dessa experiência. É uma forma de estabelecer empatia, já que você sabe como aquele personagem se sente.
E… acredite… essa é apenas uma parte dessa experiência…
Rocket não escolheu ser como é. Foi forjado ao status de aberração pelas mãos de uma mente doentia que decidiu brincar de Josef Mengele porque se viu no direito de ser Deus na ausência de um ser soberano estabelecido. Decidiu alterar a natureza da existência para criar formas de vida racionais que não nasceram para aprender com a irracionalidade humana.
Ironicamente, Rocket se tornou melhor que seu criador. Mais inteligente, mais criativo e mais sensível. Infelizmente, a barbárie que fizeram com ele o transformou em um ser mais irônico e extremamente reativo com o mundo que o ameaça o tempo todo.
Eu entendo o Rocket. Sinto o que ele sente. Uso a ironia como ferramenta de reação contra um entorno que, de tempos em tempos, tenta me destruir.
E entendo também que Rocket tem em Peter o seu melhor amigo por causa das similaridades das jornadas. Afinal de contas, os dois vieram da Terra, os dois perderam ao longo da vida as pessoas que mais amavam, e os dois são líderes natos. Certamente por causa disso eles entravam tanto em rota de colisão. E está tudo certo. Faz parte da convivência envolvendo fortes personalidades.
Peter sabia o que estava em jogo dessa vez. Perdeu a mãe pelo câncer, e o pai só queria seus poderes para dominar o universo. A mulher que ele mais amou foi morta pelo próprio pai por causa de uma joia do Infinito (que agora todo mundo sabe que é um peso de papel qualquer), e a versão alternativa dessa mesma mulher ignora por completo a história de amor que eles construíram.
Ou seja, Peter não queria perder o último ser vivo que ainda o conectava com a sua essência humana, com suas origens e com a raiz de sua personalidade errante. Faria o que fosse possível para salvar a vida daquele que o lembrava quem ele era, onde ele estava e quem ele poderia ser no futuro.
Salvar Rocket significa salvar um pequeno universo.
Dessa vez, não era exatamente a galáxia que estava em jogo. Era aquele pequeno universo de pessoas diferentes que se uniram por causas maiores. Pessoas que, em diferentes níveis, lidaram com suas perdas e rejeições diversas. As torturas que uma filha sofreu pelas mãos do pai, o filho que ficou órfão aos 8 anos de idade, o pai que teve esposa e filhos assassinados por um titã louco.
Unir pessoas tão diferentes, com tantas feridas internas e externas, em torno da missão suicida de salvar a galáxia em diferentes oportunidades é algo surreal, mas possível. E quando isso representa a necessidade em salvar alguém que amamos profundamente, encontramos algo muito especial.
Salvar a família que a estrada nos apresentou. Proteger a família que a vida nos deu. Lutar a todo custo pelo direito legítimo de não derramar lágrimas pela perda de alguém que amamos.
Eu já estava emocionalmente fragilizado por questões pessoais e afetivas. Então, ver o filme “Guardiões da Galáxia Vol. 3” neste estado fez com que a minha experiência fosse ainda mais imersiva e pessoal. Logo, esse filme se tornou ainda maior do que ele já é.
E apesar de todos os comentários sombrios e melancólicos que você acabou de ler (o que não deixa de ser verdade, pois esse é sim o filme mais dramático da trilogia), estamos diante de um filme que é divertido e empolgante. Temos cenas de ação excelentes, um plano sequência de luta espetacular e as típicas piadas de uma história dos Guardiões, mas sem exageros.
James Gunn se despede da Marvel em grande estilo, e até quero acreditar que ele mesmo se enxergou no personagem do Rocket. Imagino que Gunn se viu como um esquisito ou aberração por ser e pensar diferente dos outros. E a forma que a Disney utilizou para praticamente expulsá-lo da Marvel se alinha também com a narrativa do personagem central dessa história.
Em resumidas contas, “Guardiões da Galáxia Vol. 3” é um filme soberbo. É o melhor da trilogia nos aspectos técnicos e afetivos. Tem um ritmo frenético, mas não se atropela. Sabe quando precisa dar uma pausa para respirar, e também sabe quando deve reacelerar para retomar a ação.
E tudo isso foi deliciosamente regado por uma trilha sonora que, mais uma vez, se mostra perfeita para a história que foi contada, com canções de Beastie Boys, Alice Cooper, Earth, Wind & Fire, Heart, The Flaming Lips, Bruce Springsteen, Faith No More, entre outros.
A trilha sonora de qualidade é uma assinatura de James Gunn que faz dos seus filmes algo singular.
Muitas coisas acontecem em 2h30 de filme e, ainda assim, você não sai cansado do cinema. É difícil ver uma história tratando de temas como exploração de animais em experimentos científicos, sequestro e tráfico infantil, genocídio, empatia, compaixão, amizade e lealdade ser tão homogênea diante de tão complexa organização narrativa.
E isso, porque o roteiro não é exatamente complexo. E, ao mesmo tempo, é inteligente e altamente inspirado: a história tem referências a filmes do porte de “2001: Uma Odisseia no Espaço” “A Ilha do Dr. Moreau” e “Apocalypse Now”, sem falar que foram produzidos mais de 600 versões diferentes para esse filme, o que mostra a profundidade conceitual de James Gunn ao construir essa narrativa.
É uma história caótica e disfuncional, mas que consegue “se encontrar” no emaranhado de sentimentos e atitudes que carrega em sua alma. Assim como deve ser James Gunn. Assim como é a alma do Rocket.
Assim como é a personalidade errante da pessoa que escreveu esse artigo.
Por fim, tenho agora os Guardiões da Galáxia como aqueles amigos que eu sempre quis ter. E eu certamente seria feliz ao lado desses caras. Afinal de contas, os melhores amigos que eu tive (e tenho) na vida são tão diferentes quanto eu sou. São os excluídos, os corajosos, as aberrações.
E o único spoiler que vou dar desse filme é: não contive as lágrimas misturadas com os sorrisos ao ouvir na última cena desse filme a espetacular canção “Dog Days Are Over”, de Florence and The Machine. Minha vontade naquele momento era, literalmente, abraçar alguém.
James Gunn entregou para a Marvel Studios uma “trilogia Star Wars”, pois a franquia “Guardiões da Galáxia” entrou de vez para o panteão da cultura pop de massa. De personagens de quinta divisão a astros mainstream.
Que jornada espetacular!
E minha gratidão à James Gunn. Por causa dele, tive o privilégio em viver em um tempo onde testemunhei uma história fantástica em três ótimos filmes sobre um grupo de diferentes que tentavam salvar suas existências cheias de perdas e tragédias… salvando o universo.
Por tudo isso (também), eu digo, para você e para mim:
“The dog days are over. The dog days are done.”