Press "Enter" to skip to content
Início » Variedades » Um ser consciente

Um ser consciente

Compartilhe

Com a palavra… eu. Uma pessoa preta. Negro. Brasileiro. Como outro qualquer.

Meu andar é em 2 por 4. Meu coração pulsa a 80 batimentos por minuto. Sim, eu tenho uma espécie de arritmia cardíaca musical, e posso morrer a qualquer momento. Mas tenho certeza de que, no final, vou ouvir os atabaques dos meus ancestrais me recepcionando e me convidando para ocupar o meu lugar de direito no reino.

Na verdade, vocês não sabem, mas… meu coração ouve os atabaques de celebração, saudando reis e rainhas poderosas. Dentro de mim, segue pulsando o som da realeza negra, que construiu uma cultura rica e poderosa. O povo branco não sabe, mas silenciosamente, sorrateiramente e no melhor modo “malandreando de ser”, dominamos o mundo, influenciando todas as esferas da cultura de massa.

Sou negro porque nasci assim. Sou preto porque cresci assim. Sou filho da África porque o tempo me ensinou a me enxergar assim.

Parte da consciência precisa partir de mim. De cada pessoa preta. Da compreensão do coletivo negro sobre a riqueza do seu passado, e da grandeza que existe dentro de cada um. Apesar de todas as dores que a alma sente pelos efeitos de mais de três séculos de escravidão social e emocional, vale a pena pensar que somos hoje o resultado de ancestrais que, de alguma forma, lutaram contra um sistema opressor, cruel, violento e assassino.

Minha alma sente as correntes que prenderam meus irmãos no passado, já que parte do coletivo no presente tenta segurar meus pulsos na tentativa de me impedir a escrever minha história. Meu espírito sente as dores das chagas abertas pelas açoitadas psicológicas do racismo, seja ele verborrágico ou estrutural. Tentam me calar para me impedir de dizer essas verdades inconvenientes.

Só se esqueceram de destruir a minha mente.

Ser consciente da minha força e das minhas habilidades só me dá mais e mais poder para seguir em frente com meus discursos, compartilhando pensamentos unitários, denunciando as injustiças e, sempre que possível, celebrando o amor e a esperança.

Sou preto. Graças a Deus, Exu, Ewá, Iemanjá, Obá, Oxóssi, Oxumaré, Xangô, Oxalá ou qualquer outra entidade. Felizmente, a minha pele brilha no sol forte para que todos possam ver a minha luz interior.

Canto mais forte do que todo mundo porque preciso ser ouvido e entendido. Mas tenho a consciência de que, neste exato momento, eu finalmente encontrei pessoas que me aceitam cantando ao lado. E isso significa que posso reduzir o volume, porque encontrei um uníssono para expressar o que o meu coração sente.

Isso não significa que vou me silenciar. Só quer dizer que, depois de tanta tempestade, a minha voz está mais forte, porque outras vozes se somaram. Minha alma agradece por esse coro de vozes inteligentes que se formou.

Conscientizar não é apenas explicar para o coletivo quem foi Zumbi e Dandara dos Palmares, celebrar a importância de Milton Nascimento ou Neusa Borges para a nossa cultura, enfatizar a importância de Antonieta de Barros e Cruz e Sousa para a sociedade brasileira ou enaltecer Pelé como o Atleta do Século. Olhar para o passado e reconhecer a relevância do povo preto na construção de uma nação chamada Brasil é parte fundamental do processo. É o ponto de partida do empoderamento.

Porém…

É vital que o povo preto seja visto e enxergado no presente com o seu papel de protagonismo. Que não se curve mais pelo “você não pode” ou “você não consegue” que ouve todos os dias. Que não se silencie diante do racismo estrutural. Que a reação venha através da denúncia ao tratamento policial criminoso.

E que o povo preto também tenha a coragem de cobrar dos amigos das demais etnias o posicionamento antirracista, deixando de lado o verniz social e a relativização conveniente.

Meus atabaques continuam a bater cada vez mais forte, e esse manifesto representa apenas algumas pancadas no couro já manchado de tanto sangue. As dores no meu punho cerrado podem se tornar insuportáveis, mas não vou parar. Até porque meus ancestrais que chegaram até aqui açoitados, acorrentados a amordaçados não desistiram. Mais de 300 anos de escravidão resultaram no meu direito de escrever essas palavras para você.

E… pode acreditar… hoje, não dói tanto. Andar em 2 por 4 me ajudou a ter ritmo na música. Ouvir meu coração a 80 batimentos por minuto fez com que eu seguisse no meu tempo, olhando para a vida e aprendendo com ela. Me “malandrear” fez com que eu conquistasse a empatia e o amor de algumas pessoas. E aprendi a amar a minha voz, porque é através dela que canto a minha consciência e orgulho negro para quem quiser ouvir.

E se algum dia você, que só é diferente de mim por causa da cor da pele, estendeu a mão para enxugar minhas lágrimas e cicatrizar minhas feridas, me abraçou com fraternidade nos meus sofrimentos e (principalmente) se posicionou na frente de alguém igual a você para me defender diante da verborragia que pregava a ideia absurda de que eu tinha que desaparecer para que este mundo se tornasse um lugar melhor…

Eu agradeço, do fundo do meu coração, pela sua consciência.

E muito obrigado por me ouvir.

Ou melhor, por me deixar falar.


Compartilhe
@oEduardoMoreira