Qual é o papel do jornalismo em uma democracia?
Não escolhi o jornalismo. Foi ele, o jornalismo, quem me escolheu.
Acreditei que viveria uma vida tranquila como programador e analista de sistemas quando entrei na faculdade, mas não me sentia completo com tudo o que aprendia. Aliás, não tinha a clara percepção de que aquele aprendizado faria parte do mundo no futuro, mesmo sabendo que a área de tecnologia era o futuro.
Mas como sou um ser cheio de contradições internas e vivia muito perdido sobre mim mesmo naquela época, abandonar o curso de Análise de Sistemas foi uma escolha natural.
Olhar para o lado e ver o meu pai escrevendo horas e horas no teclado do computador foi (talvez) o meu primeiro insight para o jornalismo. Hoje, reconheço que foi naquela época que a paixão pela comunicação despertou em mim, e entendo que isso também faz todo o sentido.
Eu adoro conversar, tanto pelo telefone como nos aplicativos de mensagens. Pago a mais por planos de chamadas ilimitadas no celular, e gasto horas e horas conversando sobre os dramas da vida e minhas tragédias particulares com as pessoas que aprendi a amar.
De verdade… eu amo o fato de ser “testemunha ocular da história”, no melhor estilo Reporter Esso. Registrar momentos que marcam um “antes” e um “depois” no coletivo é uma droga que vicia. Tem o mesmo efeito de uma substância lisérgica aplicada na veia.
Você começa, e não consegue parar. Mesmo porque a cafeína e o desejo incessante de narrar os fatos não deixam.
O jornalismo me escolheu porque eu precisava me sentir inserido no mundo. Porque eu queria que alguém escutasse o que eu tenho a dizer. Porque eu queria conversar com as pessoas e, com alguma sorte, que elas entendessem a minha visão de mundo.
Hoje, torço para que elas ao menos respeitem as diferenças de pensamento estabelecidas.
Com o passar do tempo, entendi que ser jornalista, trabalhar com a comunicação e conversar com as pessoas são missões que abraçamos na vida. Você tem uma arma poderosa nas mãos: relatar os fatos, tal e como eles acontecem, doa a quem doer, pode representar estragos enormes em indivíduos e coletivos.
Mas… e quando o jornalismo tem a responsabilidade de registrar os fatos para que as pessoas reflitam por conta própria? E quando o coletivo parou de raciocinar por si, seguindo cegamente líderes com perfil ditatorial e maniqueísta?
E quando precisamos colocar a nossa existência em risco em nome desse compromisso sagrado em relatar os fatos, exatamente da forma que eles ocorrem?
E quando nossa saúde mental e emocional está sob ameaça constante de um coletivo que não acredita em você, ao mesmo tempo em que perdeu a capacidade de se escutar e dialogar?
Qual é o papel do jornalismo quando uma democracia cai?
“Guerra Civil”, novo filme produzido pela A24 (Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, Moonlight – Sob a Luz do Luar, Corra!), com roteiro e direção de Alex Garland e protagonizado por Kirsten Dunst e Wagner Moura, levanta essas e outras questões em um cenário caótico e distópico, que está muito mais próximo da realidade de qualquer democracia do que a grande maioria de nós, meros mortais e ignorantes, podemos imaginar.
Nós, cidadãos comuns, que nos escondemos em fazendas ou em pequenas cidades do interior (onde todo mundo conhece todo mundo), fingindo que “tudo está bem” dentro das nossas bolhas de ignorância e relativizando a convulsão social que está estabelecida na sociedade, ignoramos completamente um fato que está mais do que evidente: toda e qualquer democracia é muito frágil.
Qualquer democracia pode desmoronar a qualquer momento.
É só um líder populista e maniqueísta assumir o poder com o apoio em massa de um coletivo que não consegue mais raciocinar a partir da realidade dos fatos (já que posições individuais passam a ser pautadas pela distorção da narrativa), manobrar o poder a ponto de executar um golpe de estado, desmontar as instituições que dão suporte para essa mesma democracia (inclusive as forças de segurança que poderiam fazer alguma coisa em caso de golpe), armar a população e deixar que grupos com espectros diferentes se matem em nome de suas pautas (ou por causa de pensamentos divergentes).
É bem mais simples do que parece. E bem mais próximo de acontecer do que imaginamos.
E a grande sacada (ou melhor, sagacidade) do roteiro de “Guerra Civil” é que ele não deixa explícito qual é exatamente o espectro controlado pelo Presidente dos Estados Unidos. Bom, quero dizer, isso fica subentendido em referências (quase nada) sutis que aparecem ao longo do filme, tanto nos aspectos visuais como nas decisões narrativas.
Mas em nenhum momento o filme se define por uma visão progressista ou socialista. Isso fica “em aberto”, o que pode resultar em uma conclusão equivocada daqueles que não entendem o contexto histórico-narrativo dos Estados Unidos (já que o filme trabalha muito os acontecimentos dos últimos 10 anos daquela sociedade nas mais diferentes camadas).
O que é algo genial.
Nós (todos nós, sem exceção – e me incluo nessa equação) estamos condicionados a escolher um lado. A determinar heróis e vilões. A definir tudo pelo lado certo e pelo lado errado. E no mundo prático, isso invariavelmente vai acontecer: definitivamente, não consigo relativizar o racismo, o fascismo, a homofobia, a xenofobia, o machismo, a misoginia e os demais preconceitos e mecânicas de segregação social em nome de pautas que passam longe de serem consideradas “políticas”.
A não ser que você considere a diminuição, o extermínio e o desaparecimento de pretos e gays como um “ato político”. E nos dois casos, você será preso, pois as leis brasileiras consideram a manifestação, a institucionalização e a ação com base nesses preconceitos crime inafiançável.
Mas o que torna “Guerra Civil” uma experiência de catarse é que, na prática, nem mesmo essas falências de códigos morais e éticos entraram na equação contra um inimigo que manipula os dois lados.
Neste caso, o inimigo em comum é o Presidente dos Estados Unidos.
Mesmo porque essa convulsão social de “Guerra Civil” explodiu em Charlotesville, cidade na Virgínia onde em 2017 ocorreu um massacre de violência promovido por supremacistas brancos, resultando no assassinato de três pessoas negras e iniciando uma grande discussão em território norte-americano sobre a necessidade da criação de políticas antirracistas.
Não é mera coincidência o filme escolher justamente essa cidade. Vai por mim.
Levando em consideração o contexto histórico da Guerra Civil norte-americana (que aconteceu entre 1861 e 1865), que teve uma motivação clara (a manutenção da escravidão dos afro-americanos, sob o pretexto de um possível impacto econômico para os fazendeiros e grandes senhores de terra – narrativa similar à adotada no Sul do Brasil Brasil que resultou na Revolução Farroupilha entre 1835 e 1845), o conflito de “Guerra Civil!” iniciar em Charlotesville é uma espécie de “retomar do ponto onde paramos” o conflito anterior, mas com matizes diferentes.
Na história de Garland, a crise aconteceu por um Presidente que conseguiu um terceiro mandato de forma ilegítima e não prevista na Constituição norte-americana, o que resultou na união entre os estados do Texas e da Califórnia que, em teoria, conquistaram uma independência dos Estados Unidos em contrapartida ao novo ditador.
Um detalhe importante: Texas e Califórnia de espectros políticos completamente opostos no mundo real. Logo, temos que partir do princípio que as diferenças entre progressistas e socialistas foram deixadas de lado (de forma até bizarra) para enfrentar um inimigo em comum.
Esses estados se unem para derrubar do poder aquele que dividiu a nação norte-americana com pautas extremistas, desmontando as estruturas democráticas e manipulando a população como um todo, com um discurso pautado “nos valores tradicionais, na ancestralidade da nação, e em nome de Deus”.
Onde será que eu vi isso recentemente? #ironia
O que eu quero dizer é: assistir ao filme “Guerra Civil” procurando identificar quais são os espectros que estão defendendo ou derrubando o governo, ou tentando descobrir é o perfil político do Presidente ou até mesmo se são os progressistas ou socialistas que deram um golpe de estado é olhar para o filme com uma superficialidade que só vai revelar a sua ignorância e limitação intelectual.
Pois o filme sugere justamente o contrário.
É um roteiro que convida para várias reflexões, onde uma delas é justamente a capacidade de enxergar o nosso papel na sociedade diante de uma convulsão social em que ninguém consegue ouvir o outro, e todos são, de alguma forma, manipulados por aquele que tomou o poder para si, e está se valendo do caos apenas e tão somente para se manter no posto máximo da nação.
Mesmo porque, sem o poder, esse líder maniqueísta está condenado à morte.
Então…
O grande protagonista de “Guerra Civil” é o jornalismo.
Quatro jornalistas, com perfis e perspectivas completamente diferentes, entram em uma “road trip” para entrevistar o então Presidente daquilo que sobrou dos Estados Unidos da América. Ou melhor, da falsa união, já que o país se dividiu em função dessa ditadura.
E em toda jornada, vidas são transformadas. Você nunca termina uma viagem do mesmo jeito que começou. E em um cenário de destruição material resultante da queda de uma democracia, a realidade é exposta à carne viva. Literalmente.
E… pode ter certeza de uma coisa: você não vai terminar a jornada de “Guerra Civil” da mesma forma que começou. O filme vai te consumir de tal forma, que é quase inevitável o estado de choque ao final de 1h50 de projeção.
Qualquer pessoa se transforma diante do cenário de terror promovido por explosões de bombas e granadas, e dormir durante à noite ao som de tiros de metralhadora é o melhor dos mundos para quem está com a vida em risco constante.
Mas a maior destruição que um jornalista (e qualquer indivíduo) pode sofrer em uma zona de conflito é a emocional.
Lentamente, cada uma dessas existências é consumida pela realidade extrema ao redor. Pelas mortes. Pela violência explícita. Pela ausência de empatia em nome da sobrevivência.
Pela ignorância de quem está empunhando armas sem saber contra quem ou o quê estão lutando. Nem mesmo em nome do que luta. Em alguns casos, matando pelo simples prazer de matar.
“Guerra Civil” é um filme visceral, provocativo e extremamente cruel. Ao mesmo tempo, possui um roteiro inteligente o suficiente para deixar os seus recados claros, mesmo que sutis. Um letreiro da JC Penny com as portas fechadas, uma mensagem com um falso convite para a reunificação da nação norte-americana em um armazém.
Ou uma referência explícita ao Holocausto, que deixa claro quais são as motivações daqueles que decidiram pegar em armas para defender os seus “ideais patrióticos” disfarçados de sadismo e extremismo.
Sim. Essa é uma provocação. Entenda como quiser.
É uma história que mostra à carne viva (de novo, literalmente) o resultado da convulsão social construída por líderes cuja canalhice e monstruosidade são flagrantes, adotando um “modus operandi” que abandona escrúpulos ou qualquer código de moralidade, operando única e exclusivamente em nome do poder e controle.
Neste aspecto, o papel do jornalismo em relatar os fatos está em xeque o tempo todo. O filme coloca de forma intencional os jornalistas protagonistas como constantes alvos móveis, sob a ameaça das armas mais pesadas. É um grande Fortnite do mundo real, uma espécie de “survival game” em live action, onde apenas um pode sobreviver.
Digo mais: se o grande vilão do filme é o Presidente dos Estados Unidos, o seu principal inimigo não é o grupo militar revolucionário.
O grande inimigo do Presidente é justamente a imprensa.
Passo bem longe de exagerar na afirmação que vou dizer, mas a história moderna da humanidade não me deixa mentir (e sei que estou com a razão porque, afinal de contas, o jornalista relata os fatos): o jornalismo é a profissão mais importante de qualquer democracia.
Qualquer jornalista que sente o verdadeiro amor por sua profissão, e que abraça como compromisso maior a missão de ser “testemunha ocular da história” entende de forma plena e racional que esse ofício está diretamente atrelado com os fatos. E sem a exposição dos fatos, a democracia simplesmente não existe.
Pois o sistema, os líderes ditatoriais, os homens que tentam obter o controle de narrativa o tempo todo, vão sempre vencer sem os fatos revelados.
É o jornalismo que não deixou isso acontecer ao longo da história.
Por fim, “Guerra Civil” também faz essa crítica ao jornalismo tradicional, onde diferentes perfis de profissionais tendem a abraçar posições que contribuem para essa convulsão social que vivemos hoje. Reforço de narrativas extremistas e distorções também acontecem por aqueles que estão com o controle da palavra nos jornais, rádios e emissoras de televisão.
E com o advento da internet, a disseminação de notícias falsas e opiniões com espectros tendenciosos se tornaram mais frequentes.
Talvez tenha chegado a hora de alguns de nós, jornalistas, iniciarmos um movimento de reação contra a patifaria de alguns “colegas de profissão”. A falsa unidade de uma categoria profissional se transformou em comodismo ou relativização que, neste momento, não faz nenhum sentido.
Nenhuma amizade ou dívida de favor vale o risco de ver uma nação inteira se incendiar em nome de falsas bandeiras políticas.
Como filme, “Guerra Civil” é impactante e visceral.
O resultado entregue por Alex Garland é imersivo e poderoso. Ninguém passa indiferente ao enredo e eventos apresentados, mas este não é um filme de fácil assimilação (assim como a maioria dos filmes da A24, que exige um QI acima de 90 para melhor compreensão da experiência).
Os diferentes ambientes são retratados por uma cenografia grandiosa (o que impressiona, já que os filmes da A24 não contam com tanto orçamento assim), a fotografia ajuda nessa experiência estética, e um dos principais elementos para imersão narrativa é justamente o som, com efeitos sonoros que mexem com o espectador nos cinemas.
Sim. Assista “Guerra Civil” nos cinemas. Esperar pela estreia no streaming é um erro.
Neste caso em particular, é necessário ter o mínimo de conhecimento sobre os contextos políticos e sociais dos Estados Unidos para compreender melhor a profundidade da narrativa e, principalmente, as diversas críticas que “Guerra Civil” faz à frágil democracia norte-americana.
Quem está minimamente antenado sobre os eventos daquele país nos últimos 10 anos vai absorver melhor os recados do filme e sair do cinema com a convicção de que essa foi uma das mais audaciosas e pesadas críticas que o cinema norte-americano já viu em toda a sua história.
Críticas pesadas ao jornalismo passivo ou sensacionalista, que faz qualquer coisa pela notícia.
Críticas severas ao “status quo” da democracia norte-americana, que se revelou mais frágil do que nunca.
Críticas duras ao “american way of life”, que foi desmontado quando norte-americanos se voltaram contra os norte-americanos.
Críticas implacáveis ao maniqueísmo de líderes que desejam o poder a todo custo, nem que para isso uma grande democracia desmorone de forma definitiva.
E um recado muito claro.
Que mesmo em um mundo onde qualquer pessoa pode produzir e transmitir notícias, sempre será o jornalismo de ofício quem vai defender e proteger a democracia. Que é através das lentes de um fotojornalista, pelas câmeras de um cinegrafista e pelo gravador de um repórter que, em muitos casos, colocam suas existências em risco, é que vamos encontrar os fatos, tal e como eles são registrados.
Diz o velho ditado: “o maior inimigo de um político é o jornalista”. E eu completo: “e o político está disposto a colocar armas nas mãos do povo para calar os jornalistas”.
“Guerra Civil” não fala de lados ou espectros políticos.
Fala da missão maior do jornalismo.
Fala da guerra envolvendo quem controla o sistema, em nome do poder…
…tentando calar a todo custo aqueles que relatam os fatos.